“Na Terra e no Mar, Pescadores e Quilombolas na Luta!”:
Um Estudo Antropológico sobre a Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé.
Por: Samyr
Uhuru[i]
RESUMO:
O presente estudo teve como objetivo investigar as
estratégias metodológicas e organizacionais da Articulação Quilombola e
Pesqueira Subaé, com vistas a compreender a relação entre os processos de
mobilização, organização política, atuação em rede de movimentos sociais e a
configuração de uma identidade coletiva e individual. Neste estudo, buscou-se
aplicar uma pesquisa qualitativa, especificamente a etnografia, pois este
método nos ajuda a compreender elementos de relação política e metodológica da
Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé, consequentemente, novas perspectivas
de conhecimentos da mesma. Acredito na possibilidade de uma etnografia
pós-colonial e anti-imperialista que permite um deslocamento intercultural, um
diálogo profundo entre as partes envolvidas (pesquisador e pesquisado), e uma
relação sem a ideia de autoridade etnográfica, onde os subalternizados narram
as suas subalternidades.
Palavras-chave: Articulação,
Comunidades Tradicionais, Movimentos Sociais, Redes de Movimentos Sociais.
1- INTRODUÇÃO
Este estudo tem como objetivo
investigar as estratégias metodológicas e organizacionais da Articulação
Quilombola e Pesqueira Subaé, com vistas a compreender a relação entre os
processos de mobilização, organização política, atuação em rede de movimentos
sociais e a configuração de uma identidade coletiva e individual. A Articulação
Quilombola e Pesqueira Subaé surgiu no ano de 2007, no contexto da problemática
do fenômeno da Maré Vermelha, fenômeno que provocou a morte de toneladas de
peixes e mariscos na região, contribuindo para o aumento das dificuldades
encontradas pelos pescadores (as) e quilombolas da região. Desde o início, teve
como propósito defender os recursos naturais existentes na região,
compreendendo a importância do território para a reprodução física e cultural
das populações atingidas. A Articulação surge de uma necessidade organizacional
das comunidades pesqueiras e quilombolas que tem uma relação profunda e histórica
com o rio Subaé, o qual corta a cidade de Santo Amaro da Purificação (BA),passando
pelo município de São Francisco do Conde (BA) e deságua na Baia de Todos os Santos.
Fazem parte atualmente da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé as comunidades
quilombolas e pesqueiras de Cambuta, São Braz, Acupe, Dom João e Monte Recôncavo.
Todas estas comunidades são localizadas na região do Recôncavo da Bahia.
O meu interesse por este estudo surgiu
da relação de anos com as comunidades que fazem parte da Articulação Quilombola
e Pesqueira Subaé e das minhas vivências com as lideranças das referidas
comunidades. O meu primeiro contato com a articulação foi através do Conselho
Pastoral dos Pescadores (CPP), onde eu fui estagiário durante dois anos, de
2007a 2009. Nestas experiências, pude conhecer de perto as realidades dos pescadores
(as) e quilombolas desta região e os conflitos socioambientais existentes
nestas comunidades. Por “conflitos socioambientais” entendemos: “Aqueles
conflitos envolvendo grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso
e significado do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a
continuidade das formas sociais do meio que desenvolvem ameaçadas por impactos
indesejáveis – transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos –decorrentes
do exercício das práticas de outros grupos.” (ACSELRAD, 2004, p. 26).
Pude conhecer também como se
organizavam enquanto sujeitos políticos e como se articulavam na perspectiva de
luta/enfrentamento aos conflitos, participando enquanto militante do Movimento
Negro e parceiro na luta contra-hegemônica da articulação. Também como
militante e parceiro, tenho construído coletivamente com as lideranças formas e
estratégias de luta, na perspectiva de rede de movimentos sociais, como
articulador que fazia o diálogo entre a Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé
e a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) – através do Grupo de
Pesquisa e Estudos Memórias, Processos Identitários e Territorialidades no
Recôncavo da Bahia (MITO) e do Núcleo de Negras e Negros Estudantes da UFRB
(Akofena). Tenho procurado, com isto, gerar e consolidar redes de confiança e
espaços de convergência permanentes entre a Universidade e o movimento social,
possibilitando a efetivação da pesquisa militante. Compreendo como Pesquisa
Militante:
“As experiências no campo da Pesquisa
Militante, em geral, rechaçaram a dicotomia entre sujeito e objeto de pesquisa,
logrando estabelecer processos mais horizontais com as coletividades,
movimentos sociais e organizações políticas. Um processo desafiante que exige a
democratização e a coletivização de todo o processo de pesquisa, incluindo a
escolha do tema, o desenho da pesquisa, os métodos e as ferramentas a serem
utilizadas, as reflexões, as ações, os resultados e, inclusive, as publicações.
Este deve ser um caminho dialógico e aberto, no qual os movimentos sociais e as
coletividades deixam de ser meros objetos de estudo a serem observados de
maneira distante e neutra e passam a ser considerados sujeitos produtores de conhecimento
legítimo e participantes ativos na construção do saber científico”(JAUMONT,
2016, p. 418).
A minha pesquisa, por motivo do meu
engajamento com a luta da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé, se
classifica muito bem como pesquisa militante ou engajada. Uma pesquisa que
exige do pesquisador não somente a observação e a vivência de lugares pesquisados
(observação participante) como também uma atuação nos mesmos ou junto aos mesmos.
Entendo a Articulação Subaé como uma
estratégia utilizada por comunidades que enfrentam as investidas do capital
financeiro especulativo com a sua perspectiva de desenvolvimento, com
empreendimentos que afetam o meio ambiente e o modo de vida dos pescadores (as)
e quilombolas, trazendo graves impactos aos recursos naturais, assim como apropriação
e modificações do território. Neste sentido, são levantadas as seguintes
questões a serem analisadas no decorrer deste trabalho: quais as estratégias
metodológicas de lutas e enfrentamento da Articulação Quilombola e Pesqueira
Subaé em relação aos impactos socioambientais causados pelas investidas do
capital com os seus empreendimentos nas suas comunidades? Como as reações da
Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé se transformam em representações
discursivas identitárias e como nas interações políticas intermovimentos articulam
discursivamente estas representações, criando identidades transversais e
formando articulação de movimentos sociais? E, como a Articulação Quilombola e
Pesqueira Subaé desenvolve o processo de mobilizações, de forma articulada, que
permitam construções de pautas políticas emancipatórias?
Para responder tais questionamentos a
hipótese provável é que a Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé diante dos
conflitos e impactos socioambientais nas suas comunidades vêm criando
estratégias de enfrentamento, utilizando de vários mecanismos de luta, se
organizando internamente com formações das lideranças, construindo mobilizações
e dando visibilidade a sua luta e as problemáticas enfrentadas pelas mesmas.
Usam da estratégia de aliança com outros grupos e se articulam em redes de
movimentos sociais. Pois as redes aproximam e criam espaços interorganizacional
de trocas simbólicas e materiais entre os sujeitos políticos. Utilizam da
tecnologia como a internet para se articularem, trocarem informações e
sensibilizar outros grupos ou pessoas com as lutas da articulação. Compreendo a
internet como tecnologia que possibilita a difusão das narrativas e os ideários
construídos pelos pescadores (as) e quilombolas que permite desenvolver o
processo de mobilizações, de forma articulada, com visibilidade e impactos
midiáticos para além do espaço local.
Das referencias que utilizo na pesquisa
estão presentes Ilse Scherer-Warren e Alberto Meluci como principais autores
para a discussão dos conceitos de Movimentos Sociais e Redes de Movimentos
Sociais. Melucci (1996) nos mostra o movimento social como uma forma específica
de ação coletiva que dialoga com orientações e campos de ação de diferentes tipos,
e organiza modelos de ação que envolvem vários níveis da estrutura social.
Assim, os movimentos sociais emergem nos campos da vida social marcados por
conflitos sociais, quando os indivíduos e grupos estão sujeitos a pressões para
absorver no comportamento do cotidiano as exigências e as regras do sistema.
As redes, de acordo com Melucci (1999),
são constituídas por grupos que se caracterizam pela ligação múltipla, pela
militância parcial e efêmera e pelo progresso pessoal e solidariedade afetiva
como requisitos para atuação. Desta forma, o conceito de redes permite ir além
das exigências de delimitação de uma área específica, estendendo a análise para
a articulação dos atores sociais. Ainda segundo Melucci (1999), as redes de
movimentos sociais são espaços onde os grupos partilham suas experiências de
movimento e partilham identidades com organizações “formais” e “informais” que
estabelecem relações com outros grupos e indivíduos a uma área de participação
mais ampliada. Já para Ilse Scherer-Warren (2000, p. 31): “(...) as redes se
referem a um tipo de relações/articulações sociais que sempre existiram, mas
que na sociedade globalizada e da informação assumem características específicas
e relevantes e merecem atenção especial.” Constitui-se ainda num espaço onde os
grupos se articulam entre grupos com a mesma identidade social ou politica, “a
fim de ganhar visibilidade, produzir impacto na esfera publica e obter
conquistas de cidadania.” (SCHERER-WARREN, 2006, p.14).
Neste estudo, buscou-se aplicar uma
pesquisa qualitativa, especificamente a etnografia, pois este método nos ajuda
a compreender elementos de relação politica e metodológica da Articulação
Quilombola e Pesqueira Subaé, consequentemente, novas perspectivas de
conhecimento da mesma. Acredito, porém, na possibilidade de uma etnografia pós-colonial
e anti-imperialista que permite um deslocamento intercultural, um diálogo entre
profundo entre as partes envolvidas (pesquisador e pesquisado), e uma relação
sem a ideia de autoridade etnográfica, onde os subalternizados narram as suas
subalternidades. A meu ver, este é um método capaz de captar a rede de
significados, bem como conceber a Articulação Quilombola e Pescadores Subaé
como sujeitos produtores de conhecimentos, valorizando a dimensão da
experiência e da prática social. A principal técnica a ser utilizada foi a observação
participante, ou melhor, participação observante – pois fazia parte do objeto pesquisado
–, que nos permite conhecer e compreender importantes aspectos organizacionais desta
coletividade, bem como participar de suas reuniões a fim de compreender de que
forma eles vivenciam e atribuem significados ao processo das mobilizações e às
redes de movimentos sociais. Foi lançada mão de diário de campo, entrevistas
semiestruturadas individuais e coletivas. Os dados foram analisados à luz de
uma bibliografia mais geral sobre movimentos sociais e redes de movimentos
sociais.
O caminho metodológico que trilhei foi
a participação observante nas reuniões e atividades com as lideranças da
Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé e a realização de entrevistas com as
lideranças que compõem a articulação, assim como com representantes do Conselho
Pastoral dos Pescadores (CPP). Foram feitas dez entrevistas semi-estruturadas
(nove com as lideranças e uma com conselheiro da CPP), sendo os campos
etnográficos constituídos de reuniões da articulação e as atividades em
conjunto (mobilizações, ocupações, caminhadas. seminários, marchas etc.).
Também foram analisados os sites da própria articulação do Movimento dos Pescadores
e Pescadoras Artesanais (MPP), e de outras organizações que pesquisam ou atuam
nesta área temática.
Ao perceber que existem poucos estudos
que discutem estritamente esse tema na região do recôncavo baiano,
compreende-se este estudo como de extrema relevância acadêmica, pois
contribuirá para construção de novas perspectivas teóricas a serem refletidas e
discutidas na academia, assim como novas referências e amadurecimentos nas
construções epistemológicas contra-hegemônicas nas ciências sociais e humanas.
Espero ser esta também uma pesquisa de relevância social, pois tenta dialogar e
dar conta cientificamente das metodologias/estratégias organizacionais dos
movimentos sociais e da realidade conjuntural das comunidades remanescentes de
quilombos e pesqueiras do recôncavo baiano, contribuindo para a análise crítica
do processo das mobilizações para construções de redes de movimentos sociais.
Diante do exposto podemos esperar que o
processo de estudo gerado pela pesquisa provoque reflexões sobre metodologia
dos movimentos sociais, articulações em redes de movimentos sociais,
identidade, modo de vida, racismo ambiental, justiça e injustiça ambiental,
território, dentre outros temas relacionados com o cotidiano das comunidades em
relação/articulação às outras comunidades e movimentos. Reflexões que poderão proporcionar
as lideranças (sujeitos políticos), uma análise mais aprofundada sobre a importância
da participação/mobilização política e da construção de redes de movimentos sociais
na luta pelo território/vida e práticas emancipatória.
2- A ARTICULAÇÃO QUILOMBOLA E PESQUEIRA SUBAÉ.
“Chegou a hora de defender o
nosso
pedaço de chão. A terra é nossa
por
direito, respeite a nossa
tradição. A nossa
luta é por terra e água, do
litoral ao
sertão. Lutamos por igualdade,
com
liberdade garantir o pão.”
(Trecho do
Hino da Campanha por território
Pesqueiro).
Falarei aqui sobre o surgimento,
estratégias, objetivos e articulações da Articulação Quilombola e Pesqueira
Subaé, sobre a importância da articulação para os sujeitos políticos (pescadores
(as) e quilombolas), que fazem parte dela, e da necessidade de existência da mesma
para a manutenção do território ameaçado. Farei uma análise e considerações
sobre a estrutura da articulação e sobre as suas estratégias de aliança com
outros grupos e participação de redes de movimentos sociais. Utilizarei como
base referencial as teorias de Movimentos Sociais e Rede de Movimentos Sociais.
Entende-se
por Movimentos Sociais as ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e
cultural que viabilizam formas distintas da população se organizar e expressar
suas demandas (GOHN, 2008). Através dos movimentos constituem-se em sujeitos
coletivos e políticos que lutam por transformações sociais, pela construção de
novos projetos societários, democráticos e participativos, que tem por
fundamentos as categorias de classes sociais, gênero, raça, etnia e geração
(TOURAINE, 1994.). Já Rede de Movimentos Sociais podem ser entendidas como uma
forma de articulação que viabiliza e fomenta o descentramento das lutas, a
horizontalidade e a multiplicidade, bem como a contingência da diversidade, sem
se descuidar dos limites enfrentados por toda forma de organização social. Uma
forma de articulação entre o local e o global, entre o particular e o universal,
entre o uno e o diverso, nas interconexões das identidades dos atores com o
pluralismo. (SCHERER-WARREN, 2005.).
2.1- O surgimento/histórico da Articulação Quilombola e
Pesqueira Subaé:
Em entrevistas com as lideranças que fazem
parte da Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé e com o conselheiro do CPP,
Gilmar Santos, que acompanha as comunidades participantes, ficou compreendido
que a articulação surgiu no ano de 2007, no contexto da problemática chamada
“Maré Vermelha”. A “Maré Vermelha” foi uma proliferação excessiva de algas
tóxicas avermelhadas que ocorreu nas águas da Baia de Todos os Santos. Este fenômeno
matou toneladas de peixes e mariscos na região, contribuindo para o aumento das
dificuldades encontradas pelos pescadores e pescadoras. Ainda em 2007, o
Conselho Pastoral da Pesca realizou um diagnóstico rápido e participativo identificando
que as comunidades pesqueiras da região estavam profundamente vulneráveis do ponto
de vista socioambiental e econômico. As comunidades pesqueiras da região do
recôncavo têm uma particularidade e especificidade por serem comunidades com
múltiplas identidades: são pesqueiras, extrativistas e quilombolas. Sendo
assim, é possível entender a multiplicidade da identidade na fala de HALL quando
ele nos diz que:
“O
sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está
se tornando
fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas
vezes contraditórias ou não resolvidas.” (HALL, 2006, p.12).
O ano de 2007 foi marcado pela luta das
comunidades junto aos órgãos públicos (IMA, IBAMA, MP, Ministério da Pesca,
INSS.), e pela realização de várias ações socioeducativas e formativas com o
intuito de contribuir com o empoderamento das lideranças comunitárias
pesqueiras e quilombolas, sobre seus direitos trabalhistas e previdenciários.
Dentre os objetivos, visava-se superar os problemas relacionados à documentação
pessoal (carteira de pesca, inscrição na previdência social, etc.) e
comunitária (formalização de associações, estatutos, etc.). Esta era uma meta
dado que a maioria das comunidades desconheciam os direitos sociais e a
importância dos documentos básicos como condições essenciais para acessar
benefícios trabalhistas e previdenciários.
“As comunidades pesqueiras da região foram completamente
afetadas pela maré vermelha.
Não podiam mais pescar e nem mariscar. Os peixes estavam morrendo em grande quantidade. Nós da CPP fizemos
um diagnóstico rápido e identificamos esta problemática. Junto com as lideranças acionamos os órgãos
competentes e denunciamos.
(...) Fizemos também nas comunidades que acompanhávamos no inicio umas formações sobre direitos
previdenciários e trabalhistas. Fizemos cursos de multiplicadores e juristas leigos com as lideranças. Estes
cursos foram de grande importância
para o fortalecimento e o empoderamento das comunidades.” (Entrevista com
Gilmar Santos, conselheiro da CPP, 2016).
“Nós
estávamos passando muito sufoco depois da maré vermelha. A CPP chegou e nos
ajudou bastante com os cursos de multiplicadores e juristas leigos. A partir
daí tivemos conhecimentos de alguns direitos que desconhecíamos. Começamos a conhecer
outras comunidades que faziam parte do MPP e que tinham problemas semelhantes
ao nosso e resolvemos lutar juntos.” (Entrevista com Luis Brito, liderança do
Cambuta, 2016).
Em 2008 foi criado o grupo Pró-RESEX
(Reserva Extrativista) com as lideranças das comunidades que fazem parte da
articulação, e que tinha o propósito de criar uma unidade de conservação que
respeitasse a cultura local e a proteção dos recursos naturais existentes. Foi um
momento muito intenso de articulação e mobilização tendo em vista a defesa dos
recursos naturais existentes na região. Pode-se perceber que os movimentos
sociais contribuem para compreensões e interpretações da realidade, empoderando
os agentes/atores sociais para uma luta coletiva em redes de movimentos
sociais. Segundo Maria da Glória Gohn:
“Os
movimentos realizam diagnósticos sobre a realidade social, constroem propostas.
Atuando em redes, constroem ações coletivas que agem como resistência à
exclusão e lutam pela inclusão social. Constituem e desenvolvem o chamado
empowerment de atores da sociedade civil organizada à medida que criam sujeitos
sociais para essa atuação em rede. Tanto os movimentos sociais dos anos 1980
como os atuais têm constituído representações simbólicas afirmativas por meio
de discursos e práticas. Criam identidades para grupos antes dispersos e desorganizados.
Ao realizar essas ações, projetam em seus participantes sentimentos de
pertencimento social. Aqueles que eram excluídos passam a se sentir incluídos
em algum tipo de ação de um grupo ativo” (GOHN 2011)
Os grupos realizaram muitas reuniões e
seminários; foram elaborados alguns materiais didáticos e houve coleta de
assinaturas nas comunidades para viabilizar a criação da RESEX. No entanto,
infelizmente, o Governo Federal naquele ano (ministro do meio ambiente Carlos Minc),
comprometido com interesses empresariais do ramo do turismo, engavetou o pedido
de criação da RESEX dando um duro golpe nos processos de mobilização das
comunidades.
“A RESEX
era pra nós a possibilidade de proteger o nosso meio ambiente. Era um dos meios
de proteger o nosso território que estava ameaçado com poluição e desmatamento
dos manguezais. Ficamos sabendo sobre a RESEX e sobre a sua importância numa
reunião aqui em Cambuta. A partir dos conhecimentos sobre a RESEX, tivemos a
ideia de construir uma aqui na nossa região. Começamos então a estudar mais
sobre como construir uma RESEX. Começamos a fazer varias reuniões e seminários
conjunta com as lideranças de Acupe e São Braz.” (Entrevista com Paulo Sergio,
liderança do Cambuta, 2016). “Poxa... foram muitas reuniões mesmo! Fazíamos reuniões
e seminários em todas as comunidades daqui da região de Santo Amaro. Fizemos
todos os procedimentos e enviamos o pedido para o órgão responsável. Mas foi
engavetado pelo ministro da época.” (Entrevista com Luis Brito, liderança do
Cambuta, 2016).
Neste mesmo ano as lideranças das
comunidades e o CPP tiveram acesso a informação de que um grupo empresarial
(Property Logic), havia manifestado interesse em se apropriar da Ilha de
Cajaiba para construir um mega empreendimento turístico. As lideranças conjuntamente
com o CPP passaram a aprofundar os processos de formação política e de articulação
para garantir a preservação da ilha, importante espaço de reprodução física e cultural
das comunidades pesqueiras e quilombolas da região. Nesse contexto, já existia
uma relação forte das comunidades desta região que seriam afetadas com o
empreendimento com outras comunidades pesqueiras e quilombolas do recôncavo _
as quais estavam afirmando sua identidade como remanescente de quilombos _
através do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais.
“Nós
ficamos sabendo de uma articulação para construção de um eco resort na Ilha de Cajaiba
pelo grupo empresarial Property Logic. A ideia era construir um mega empreendimento
na ilha. Um mega empreendimento mesmo. Com espaço reservado para prática de
Windsurfes, jet-ski, caiaques, veleiros etc.) Isso acabaria resultando em prejuízos
para os pescadores e pescadoras da região. E eles acabariam com os manguezais e
a floresta atlântica. Diante destas informações e preocupações, decidimos
aprofundar sobre a problemática e cair pra cima.” (Entrevista com Gilmar Santos,
conselheiro da CPP, 2016). “Ficamos abismados e preocupados depois desta informação
da construção do Eco Resort. Pois todos nós usamos a ilha. Tanto para pescar
como para o extrativismo. Quando saímos para pescar a noite passamos o tempo
frio esperando o momento de ir puxar a rede no sobrado. E na época de frutas
como cajá, etc, a gente sai para catar as cajás. Aquele lugar é de grande
importância para nós! Depois desta noticia... fizemos varias reuniões, vários
encontros com os companheiros e companheiras de outras comunidades e do MPP.
Foi uma mobilização retada.” (Entrevista com Paulo Sergio, liderança de
Cambuta, 2016).
As comunidades da articulação passaram
então a refletir sobre a identidade étnicoracial, sobre a história de
resistência negra e sobre a importância do território tradicional para a sua
reprodução física e cultural. Logo as três principais comunidades da articulação,
Acupe, Cambuta e São Braz – depois as comunidades D. João e Monte Recôncavo
vieram fazer parte da articulação -, passaram a incidir sobre a Fundação Cultural
Palmares e conquistaram a certificação quilombola paralelo a um intenso
processo de luta contra a empresa Property Logic. Foram muitas audiências e
reuniões com os órgãos ambientais e também com os Ministérios Públicos Estadual
e Federal no sentido de denunciar as ameaças que o empreendimento turístico
poderia trazer às comunidades, bem como exigindo que o poder público
assegurasse a efetivação aos direitos enquanto comunidades remanescentes de quilombos,
conforme previsto na constituição federal.
“Entendendo
o grande problema que seria para todos nós este empreendimento, percebemos que
tínhamos que nos mobilizarmos e criarmos estratégias para garantirmos a nossa
Ilha de Cajaiba. Não podíamos perder o nosso espaço de sobrevivência. Então
começamos a conhecer outras comunidades pesqueiras que faziam parte do MPP se
autodeclarando quilombolas. Começamos a estudar sobre o tema e percebemos que
tínhamos todos os traços de uma comunidade quilombola e nos autodeclaramos
quilombolas também. E com esta certidão quilombola em mãos fomos para cima dos
órgãos responsáveis para garantirmos o nosso território. E a ilha de Cajaiba
faz parte dela também.” (Carla Bastos, liderança da comunidade São Braz, 2016).
Após muitos embates com o empreendedor,
as comunidades conseguiram suspender a realização do nocivo empreendimento
turístico que estava previsto. Este fato ficou marcado na memória daquelas
lideranças que com muita ousadia e coragem conseguiram defender seus territórios
tradicionais. Isto fortaleceu a Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé que
teve força para continuar a lutar contra outras tentativas empreendedoras e
governamentais de destruir os seus territórios, tal como o projeto da monocultura
do eucalipto que está vindo com muita força para a região.
2.2-Processo organizacional da Articulação Quilombola e
Pesqueira Subaé:
A Articulação Quilombola e Pesqueira
Subaé surge de uma necessidade organizacional das comunidades pesqueiras e
quilombolas que têm uma relação profunda e histórica com o rio Subaé ou que são
da região circunvizinha, assim como da necessidade de promover uma articulação
para luta de forma coletiva regional. Acredita-se na importância da união das forças
numa empreitada contra as problemáticas socioambientais comuns, na tentativa de
defender os seus territórios tradicionalmente ocupados da cobiça capitalista e
proteger também os recursos naturais mantendo assim o seu modo de vida.
“A
articulação surge com o objetivo de unir as comunidades locais. Unir as comunidades
quilombolas e pesqueiras daqui da região. Pois acreditamos que só através da
união da gente que podemos conseguir resolver os nossos problemas. Pois juntos
somos mais fortes. Pois a elite se organiza muito bem e são bem unidas para destruir
a gente. Temos que fazer o mesmo para nos defender e defender o nosso território.”
(Thico, liderança da comunidade Acupe,2016).
“Ou nos
organizamos para defender o que é nosso filho... perderemos tudo! Por isso temos
que nos articular com outros grupos e comunidades para ficarmos fortes o suficiente
para destruirmos o mal.” (Carla, liderança da comunidade São Braz, 2016).
Fazem parte atualmente da Articulação
Quilombola e Pesqueira Subaé as comunidades de São Braz, Cambuta, Acupe, D.
João e Monte Recôncavo. Todas estas comunidades são localizadas na região do
recôncavo da Bahia e são comunidades quilombolas e pesqueiras. As comunidades
remanescentes de quilombos São Braz, Acupe e Cambuta são pertencentes à cidade
de Santo Amaro. As comunidades remanescentes de quilombos D. João e Monte Recôncavo
são pertencentes à cidade de São Francisco do Conde. As duas cidades – Santo Amaro
e São Francisco do Conde – são cidades vizinhas. Todas elas utilizam de formas coletivas
e tradicionais os mesmos recursos naturais da Ilha de Cajaiba.
A articulação iniciou-se com as três
comunidades de Santo Amaro (Cambuta. São Braz e Acupe). Todas as três eram
acompanhadas pelo Conselho Pastoral dos Pescadores e também faziam parte do
Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais. As comunidades de São Francisco
do Conde (D. João e Monte Recôncavo) começam a fazer parte da articulação alguns
anos depois, quando o CPP e o MPP têm informações sobre estas comunidades por outros
pescadores da região e assim sentem a necessidade de se aproximar das mesmas.
Desde então estas comunidades passam a fazer parte da Articulação Quilombola e
Pesqueira Subaé e, consequentemente, passam também a fazer parte do Movimento
dos Pescadores e Pescadoras Artesanais.
“Inicialmente
a Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé tinham três comunidades, a
comunidade Cambuta, São Braz e Acupe. Pois nós do CPP só acompanhávamos neste
momento estas comunidades. Não tínhamos informações e nem diálogo com estas
comunidades ainda. Com as informações e conhecimentos das mesmas, passamos a
manter um contato até que as comunidades D. João e Monte Recôncavo aceitaram a
participar da Articulação e do MPP.” (Gilmar, conselheiro do CPP, 2016).
O processo organizacional da
articulação funciona da seguinte forma: a) Reuniões bimensais e itinerantes: as
reuniões ordinárias funcionam a cada dois meses, podendo existir alguma reunião
extraordinária a qualquer momento dependendo da necessidade. Cada reunião é
feita numa comunidade diferente que faze parte da articulação; b) São
construídos pela articulação fóruns de discussões para refletir sobre a conjuntura
e problemáticas que os atingem. Podem ser problemáticas coletivas (que atingem todas
as comunidades), como por exemplo, a construção do Eco Resort na Ilha de
Cajaíba, que iria afetar todas as comunidades – ou problemáticas particulares
(que afetam somente uma comunidade), como por exemplo, a demarcação do
território pelo INCRA; c) São construídas deliberações de mobilizações e formas
de enfrentamentos a partir das demandas particulares ou coletivas, construindo
de forma coletiva e horizontal as estratégias de lutas e enfrentamentos; e, d)
Cada comunidade
participante da articulação faz sua reunião interna, na sua
sede, levantando as problemáticas e estratégias de embate levando as para a
reunião da articulação, construindo assim uma agenda de luta, mobilizações e
atividades coletivas.
“Nós nos
organizamos em reuniões a cada dois meses, as reuniões são rotativas. Ou seja,
cada reunião é numa comunidade diferente. Nós levantamos os problemas de todas
as comunidades e criamos formas de combater estes problemas de forma coletiva.”
(Thico, liderança da comunidade Acupe, 2016.).
“Temos
reuniões nas nossas próprias comunidades, levantamos os problemas da nossa
comunidade e levamos para a reunião do coletivo. E lá construímos as
mobilizações e ações onde forem necessárias.” (Lolô, liderança da comunidade
Cambuta, 2016).
A Articulação Quilombola e Pesqueira
Subaé tem como estratégias de luta a articulação em rede com outros movimentos
sociais ou grupos de mesma identidade social ou política. O principal objetivo
é unir força contra a primazia do mercado sobre os direitos humanos – que é a
principal causa da desigualdade, da discriminação e da degradação ambiental.
Articulam-se atualmente com AATR, AKOFENA, MITO e GEOGRAFAR; e com outras
comunidades quilombolas e pesqueiras que fazem parte ou não do MPP.
“Temos
articulação com a AATR, MITO, GEOGRAFAR e vocês do Movimento Negro.” (Carla,
liderança da comunidade São Braz, 2016.). “Nós nos articulamos com outros grupos
e movimentos sociais. Isso é importante!! Nós, por exemplo, nos articulamos com
vocês da UFRB. Se não fosse esta articulação algumas atividades nossas não
seriam possíveis. Nos articulamos com todos os movimentos sociais que for
necessário. Pois quanto mais grupos unidos, mas visibilidade e forças teremos
para a guerra. Temos parcerias com a AATR, com vocês da universidade/UFRB e com
o pessoal da UFBA.” (Paulo Sergio, liderança da comunidade Cambuta, 2016.).
A afirmação das lideranças sobre a
importância da articulação e do diálogo com outros grupos ou movimentos sociais
faz perceber o que a autora SchererWarrer acertadamente propõe em sua análise
dos movimentos sociais em termos de redes. Ela afirma a necessidades de
articulações entre: “as formas de articulação entre o local e o global, entre o
particular e o universal, entre o uno e o diverso, interconexões das identidades
dos atores com o pluralismo” (1999, p. 27). Segundo esta perspectiva, é preciso
compreender os Movimentos Sociais inseridos no contexto do século XXI, no qual
“surge um número cada vez maior de movimentos de caráter transnacional, como os
direitos humanos, pela paz, ecologistas, feministas, étnicos e outros” (1999,
p. 27). Estes movimentos emergentes são a síntese articulatória de vários
submovimentos identitários (2007, p. 45), que se conectam por meio de redes e
são o resultado de todo um processo articulatório, entre os vários níveis, de
como os interesses e os valores da cidadania se organizam em cada sociedade.
São construídas pela articulação
formações, capacitações e cursos para as lideranças com o intuito de empoderar
a base e buscar novos quadros para a articulação e consequentemente para o MPP.
Busca-se, assim, autonomia para resolver alguns problemas burocráticos como
conhecer os seus direitos previdenciários, e criam-se também formas de autogestão
e mecanismos para buscar recursos/renda para articulação e comunidades. Como exemplo
disto pode se citar o projeto de turismo de base comunitária, onde são criados
roteiros coletivos que passam por todas as comunidades, e as cooperativas.
Para forma de comunicação e mobilização
são utilizadas as ferramentas tradicionais dos movimentos sociais (reuniões e
panfletagens), e são usadas também as ferramentas modernas da internet como as
redes sociais (facebook e whatsapp) – que são formas rápidas de comunicação
contemporânea – articulando se e fazendo reuniões através estas ferramentas.
“Usamos
como formas de comunicação e divulgação das atividades além das reuniões a
internet – as redes sociais – facebook e whatsapp. Estamos nos tempos modernos
né não?! Temos que usar estas ferramentas mesmo. E ainda é mais prático.
Resolvemos alguns problemas por eles mesmos. Todo mundo tem um celular com
estas tecnologias.” (Carla, liderança de São Braz, 2016.).
“Temos
grupos no whatsapp e temos grupo também no facebook. Não só a articulação que
tem. Todas as associações quilombolas e o movimento dos pescadores também tem.
É de extrema importância nos dias de hoje.” (Thico, liderança da comunidade Acupe,
2016.).
As afirmações das lideranças, agora com
a ideia do uso das tecnologias de comunicação modernas – a internet –, nos
remetem às afirmações de SchererWarren quando nos fala no seu texto que:
“Tanto o movimento altermundialização quanto as redes de
movimentos específicos têm se beneficiado desses recursos, não só para a
comunicação inter-rede, mas também na construção de uma rede de simpatizantes,
de solidariedade e na formação de uma opinião publica mundial e (ou)
latinoamericana, a partir de uma sociedade civil crítica.(...) as novas
tecnologias, especialmente a internet e as rádios comunitárias, são um elemento
facilitador na difusão das narrativas e ideários em construção pelos sujeitos
(...).” (SCHERER-WARREN, 2008, p. 513.).
Percebe-se, então, que além de ser um
espaço de luta, intercâmbio e formação política do MPP, a Articulação
Quilombola e Pesqueira Subaé é um espaço onde as comunidades refletem sobre a
conjuntura e traçam estratégias de luta em defesa dos seus territórios,
direitos e políticas públicas. É espaço de estratégia de ação coletiva, baseada
numa cultura solidária, cooperativa, horizontalizada e mais democrática, para
uma nova forma de organização da
sociedade. E que articula “a heterogeneidade de múltiplos
atores coletivos em torno de unidades de referências normativas, relativamente abertas
e plurais.” (SCHERER-WARREN, 2008, p. 515.).
2.3- Reunião de Rearticulação da Articulação Quilombola e
Pesqueira Subaé:
Durante algum tempo a Articulação Quilombola e Pesqueira
Subaé tinha dado uma parada nas suas atividades (reuniões, mobilizações, formações
etc.). A última reunião ordinária tinha acontecido no mês de maio do ano de
2015, na comunidade D. João, em São Francisco do Conde. Esta parada das
atividades foi motivada por problemas na mobilização interna nas comunidades e
animação das bases, consequentemente pela falta de pessoas dispostas a
participar das reuniões – tanto internas (na comunidade), quanto externas (da
articulação). Tendo assim uma baixa na participação e
déficit na construção de novos quadros de militantes.
Com as paradas das atividades da
articulação, vários problemas foram se agravando e se acumulando, enquanto
outros novos problemas foram aparecendo, tais como: a demora do INCRA em fazer
a demarcação dos territórios quilombolas; construções de muros nas ilhotas de
Acupe – as ilhotas são umas das poucas áreas de lazer que a comunidade tem; as construções
de estradas na Ilha de Cajaíba e o plano urbanístico da Ilha de Cajaíba apresentado
pela a prefeitura de São Francisco do Conde – uma nova proposta de empreendimentos
na Ilha; enquanto o projeto de turismo de base comunitária ficou parado.
Diante das problemáticas, as lideranças
perceberam a necessidade de rearticulação da Articulação Quilombola e Pesqueira
Subaé. Agendaram uma reunião para se reorganizarem enquanto articulação que
aconteceu no dia 22/03/2016, na comunidade de Acupe, às nove horas da manhã. Os
pontos de pauta da reunião foram: 1) Avaliação e reorganização da Articulação
Quilombola e Pesqueira Subaé; 2) Retomada do projeto de turismo de base comunitária;
e, 3) As problemáticas das Ilhotas de Acupe.
A reunião, em que eu participei a
convite do CPP, foi iniciada com a leitura de um texto do Papa Francisco pela
liderança de São Braz, Carla. Após a leitura, passamos para a primeira pauta
(avaliação e reorganização da articulação). Foi colocada pelas lideranças a importância
da retomada das atividades, trazendo em memória as conquistas e lutas que ocorreram
através da articulação das comunidades. Ficou decidida a retomada das reuniões para
começar a pensar estratégias para os enfrentamentos que estão por vir. As
reuniões deixaram de ser bimensais para serem mensais – pois havia um ano sem
que acontecessem as reuniões e as comunidades estavam cheias de problemas para
serem resolvidos imediatamente.
“Não
podemos deixar que a articulação acabe. Ela foi e é muito importante para todos
nós. Ela foi e é importante para as nossas comunidades. Lembrome de todas as atividades
e conquistas que conseguimos de forma coletiva. Isso mostra a força da nossa
união e a necessidade de continuarmos na luta de forma coletiva.” (Carla, liderança
da comunidade São Braz, 2016.).
“Lembro-me
das reuniões, formações e mobilizações que fazíamos. Tinha um poder imenso a
nossa articulação. Não podemos desistir agora. Temos que voltar com as atividades
e nos reorganizarmos. Pois os problemas só aumentam se ficarmos parados.”
(Thico, liderança da comunidade Acupe, 2016).
“Eu já
estava com saudades destas reuniões. Precisamos sim dar continuidade na articulação.
Foi com ela que conseguimos barrar o empreendimento na Ilha de Cajaíba.”
(Luisa, liderança da comunidade Cambuta, 2016.).
Passamos para a segunda pauta (retomada
do projeto de turismo de base comunitária) logo depois de um momento reflexivo
sobre a articulação e de rememoração das ações coletivas, conquistas e lutas.
Foi feita a leitura do projeto de turismo de base comunitária. Foram colocadas
pelas lideranças as necessidades econômicas para colocar em andamento as atividades
do projeto – pois este projeto trará recursos/renda para as comunidades. Foi aprovada
com unanimidade a continuidade do projeto e pensadas estratégias para colocá-lo
em funcionamento o mais rápido possível.
“As
nossas comunidades tem a necessidade de ter este projeto funcionando. Precisamos
nos manter economicamente. E este projeto tem tudo para dar certo. Temos
lugares lindos que podem ser colocados no roteiro e assim fazermos a nossa atividade
e obter recurso tanto para nós individualmente quanto para a articulação.”(Lolô,
liderança da comunidade Cambuta, 2016.).
“Não tem
com não dar certo. Estou terminando este mês o meu curso de turismo. E acho uma
boa podermos utilizar o meu aprendizado para que este projeto caminhe. Estou
disposta a me colocar para que este projeto dê muito certo. Já estou até pensando
no roteiro.” (Luisa, liderança da comunidade Cambuta, 2016.).
Na terceira e última pauta da reunião, as problemáticas das
Ilhotas de Acupe foram colocadas pelas lideranças e colocada a necessidade de
se fazer uma ação direta nas ilhotas - já que os órgãos públicos de
fiscalização nada fazem. Falaram que as obras dentro das ilhotas pela
prefeitura de São Francisco Conde continuam e com avanços. Apresentaram as indignações
por não poderem mais utilizar de um dos poucos espaços que eles tinham de lazer.
Contaram que estes espaços foram utilizados pela comunidade durante muitos anos
e que agora estão ameaçados de nunca mais usufruírem do espaço que é deles por
direito.
“Não
podemos mais ficar dialogando com o Estado, com os órgãos responsáveis. As nossas
ilhotas estão sendo destruídas por aqueles muros. Temos que derrubar aqueles muros.
Temos que fazer uma ação logo e coletivamente. Chega de ficar esperando pelos
órgãos do Estado. Vamos juntar uma quantidade enorme de pessoas e derrubamos
nós mesmo aqueles muros. Já foi confirmado pelos órgão fiscalizadores que
aquele empreendimento é ilegal. Então... o que estamos esperando?! Por mim iriamos
logo hoje derrubar aqueles muros!” (Sr. Carlos, liderança da comunidade Acupe,
2016).
“É um
absurdo aquilo que estão fazendo. É um absurdo não podermos mais usar o nosso
espaço. Fico muito triste! As Ilhotas era o lugar que iriamos nos finais de semana
jogar bola, tomar um banho, curtir com os amigos e familia. Agora somos impedidos
de usar o ue é nosso por direito. Dar uma raiva!!” (Thico, liderança da comunidade
Acupe, 2016.).
A reunião de rearticulação da
Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé foi concluída às 16h00min do mesmo
dia. Ficou decidido que a próxima reunião seria na comunidade São Braz, no dia
23/04/2016 as 08h30min. A reunião terminou com um canto indígena que nos fez ter
mais certeza da importância da organização, o canto dizia o seguinte: “Pisa
ligeiro. Pisa ligeiro. Quem não aguenta com a formiga, não assanha o formigueiro!!”
Todos nós saímos da reunião felizes e com muita esperança das coisas serem
diferentes a partir daquele dia; acreditando mais ainda na importância, na
força da articulação e na necessidade da organização coletiva. Tendo a absoluta
certeza nos corações de que nada mais necessária do que a compreensão da
filosofia africana da cultura Xhosa, o “UBUNTU – EU SOU PORQUE NÓS SOMOS!!”
2.4- Análise e considerações:
Foi percebida a importância e
necessidade dos sujeitos (pescadores (a) e quilombolas), se organizarem e se
articularem em defesa dos seus territórios e expor suas demandas materiais e
simbólicas. As demandas materiais têm como referências objetivas as exclusões e
carências cotidianas dos sujeitos base, neste caso os pescadores (as) e
quilombolas, das lutas e são, portanto, histórica e espacialmente
referenciadas. Estas demandas se tornam signos e
representações simbólicas através da tradução de seus
significados em politicas de cidadania. (SCHERER-WARREN, 2008.). As
necessidades materiais são transformadas em representações simbólicas de
carências de determinados grupos e, por consequência, são construídas pautas de
reivindicações ou transformação a nível social da situação existente. Como nos
afirma SCHERER-WARREN:
“No
combate a exclusão, apresenta-se a dimensão das condições materiais de existência
(desigualdade, pobreza, desemprego, segregação espacial etc.), com a dimensão
das condições simbólica de sua reprodução (estigma, discriminação,desvalorização
pessoal e coletiva etc.), e como as condições politicas decorrentes (subcidadania,
desempoderamento etc.). (SCHERERWARREN, 2007, P. 37.).”
Nos discursos dos sujeitos da
Articulação Quilombola e Pesqueira Subaé, percebe-se os sentidos coletivos
atribuídos às carências e os sentidos da identificação dos mesmos, transformando-os
em atores políticos, no processo de transformação destas carências em demandas,
destas demandas em pautas políticas e das pautas políticas em mobilizações e protestos.
No centro deste processo estão o auto-reconhecimento e a auto-identificação coletiva
em torno dos conflitos, dos adversários a serem enfrentados e da construção dos
projetos e utopia de mudanças.
Nas estruturas internas organizacionais
da articulação – um espaço de sujeitos com perspectivas e compreensão
diferentes do mundo –, existe um embate entre o respeito à diversidade de
pensamentos e a busca da unidade possível na ação. Cria-se, desta forma, o ideário
de horizontalidade organizacional numa perspectiva de irmandade, aproximando a memória
histórica da exclusão e da discriminação com o seu legado no presente, fruto
desse processo histórico. (SCHERER-WARREN, 2008.). A subjetividade é, neste
sentido, construída diante dos sofrimentos na atualidade, permitindo as
identidades comuns (pescadores (as) e quilombolas), em torno de uma utopia
emancipatória na construção de sujeitos de direitos.
“A
releitura da história e a sua tradução em novas referências e ideários que encontram
eco no cotidiano dos grupos subalternos criam condições propícias para que eles
se relocalizem em relação à herança social de sua condição humana, recuperem e
re-interpretem signos culturais (por exemplo o de raça e o de etnia), construam
identidades coletivas e se reconheçam mutuamente como sujeitos de direitos.”
(SCHERER-WARREN, 2008, p. 513).
Da estratégia de aliança e articulação
com outros grupos ou redes de Movimentos Sociais, percebe-se na Articulação
Quilombola e Pesqueira Subaé a criação de um movimento que se diferencia das
estratégias dos movimentos tradicionais “revolucionários”, transitando de
política “uni-identitária” (pescador ou quilombola), para politicas discursivas
de uma maior diversidade (raça, gênero, classe, geracional). Estas novas
estratégias atuam nas formas interorganizacionais através da troca de saberes,
formando relações de equivalência discursiva (Laclau, 2011). Mesmo face à
diversidade e diferença, constroem-se pontes de encontros para projetos de mudança
social, extrapolando as fronteiras simbólicas e territoriais e construindo modelos
discursivos e de ações politicas baseadas em estruturas de identificações
múltiplas, e formas de organização pautadas em identificações híbridas e em
formas discursivas múltiplas. Estas estratégias e condição, por um lado, criam
tensões e ambiguidades no interior do movimento e das redes, mas, por outro,
possibilitam a construção de espaços favoráveis para a construção de alteridade
intersujeitos e para praticas democráticas e democratizantes.
3- CONCLUSÃO:
O Recôncavo da Bahia é uma região que se constitui numa das
áreas mais antigas do processo colonial escravista, datado do século XVI ao século
XIX. Foi a região que mais exportou açúcar e fumo para a Europa, no mercado
transatlântico, produzido pelas mãos negras. É uma região com histórico de
resistências negras muito fortes, desde rebeliões de escravizados a irmandades
negras. Sendo assim, uma região de resistência e majoritariamente negra,
cercada por comunidades quilombolas e terreiros de candomblé. Com a expansão do
capitalismo global chegaram várias indústrias deletérias para a região,
modificando toda a realidade sociocultural e territorial.
“No
Recôncavo, a expansão do capitalismo global teve como consequência, além da expansão
de polos petroquímicos e a consequente restruturação fundiária e de mão de obra
da região, a chegada de indústrias altamente poluentes na região. A
transferência deste tipo de indústria de países centrais para lugares dos
países e regiões periféricas onde a mão de obra era barata e vulnerável,
geralmente populações étnicas minoritárias, e onde os poderes nacionais e
locais pudessem se constituir em aliados, é um processo comum na expansão
capitalista.” (MITO, 2012, p.28-29).
Não é de se espantar que as comunidades
tradicionais desta região sofrerem com impactos e injustiças ambientais
oriundas do Racismo Ambiental. Estas comunidades sofrem diretamente de forma
negativa com as consequências da expansão imobiliária, concentração fundiária e
valorização capitalista da terra e água, que os tem expulsado dos seus
territórios tradicionalmente ocupados. Enquanto os pescadores e quilombolas vêm
o espaço dos territórios como de sustentabilidade da família e da própria comunidade,
os empreendedores vêm os mesmos espaços com o olhar do capital, tendo em vista
lucros e exploração, agredindo o meio ambiente (rio, manguezais, ilhotas, ilhas
etc.). Neste processo de disputa de territórios, as comunidades são
consideradas atrasadas e entraves para o dito desenvolvimento.
O direito de permanência nos
territórios tradicionais pesqueiros e quilombolas são negados, considerados
como espaços vazios, e apropriados pelos grandes empreendimentos empresariais,
latifúndios, especuladores de terras, turismo empresarial, dentre outros empreendimentos
destruidores dos meios de subsistência dos quilombolas e pescadores. A apropriação
destes espaços dos territórios se dá de forma ilegal e com a conivência do Estado
Brasileiro, que incentiva por meio de investimentos com recursos públicos e
entrada do capital estrangeiro, inclusive utilizando como discurso a ideia de
que as áreas ocupadas pelas comunidades são livres para compras e instalações
dos megaprojetos turísticos. Estas estratégias fazem parte da política de
privatização das terras e águas e dos espaços tradicionalmente ocupados por
estas comunidades. Como nos afirma o Movimento dos Pescadores e Pescadoras
Artesanais na sua cartilha de trabalho de base:
“O modelo
de desenvolvimento imposto a sociedade brasileira em especial o implementado
pelo PAC - Programa de Aceleração do Crescimento -, de muitas maneiras vem
destruindo o patrimônio histórico, social, cultural, ambiental e econômico das
comunidades. Por meio da implantação de grandes projetos está causando nas
comunidades sérios conflitos, exclusão, empobrecimento e a destruição indiscriminada
do meio ambiente.” (CARTILHA PARA TRABALHO DE BASE DA CAMPANHA PELO TERRITÓRIO
PESQUEIRO, 2011, p.08).
Percebe-se diante dos conflitos
existentes nas comunidades tradicionais quilombola e pesqueira e das falas das
lideranças da articulação Quilombola e Pesqueira Subaé, a importância e a
necessidade dos sujeitos (quilombolas e pescadores) se organizarem e se articularem
em defesa dos seus territórios e expor as suas demandas materiais e simbólicas.
Tais demandas são transformadas em signos e representações simbólicas através
da tradução de seus significados em políticas de cidadania, quando são
construídas pautas de reivindicações ou transformações a nível social das situações
existentes. A organização interna entre os seus pares nas comunidades é
articulada em associações e movimentos sociais para defesa e segurança dos
direitos sobre os seus territórios e pela possibilidade de continuarem com as
suas atividades e se reproduzirem socioculturalmente. As articulações em redes
de movimentos sociais são, então, construídas com grupos que têm a mesma
identidade social e politica, na perspectiva de unir forças para construírem,
de forma coletiva, estratégias de enfrentamento à primazia do mercado sobre os
direitos humanos, que é a principal causa da desigualdade, da discriminação e
degradação ambiental.
Percebe-se na Articulação Quilombola e
Pesqueira Subaé a criação de um movimento que se diferencia das estratégias dos
movimentos tradicionais “revolucionários”, transitando de política
“uni-identitária” (pescador ou quilombola), para politicas discursivas de uma maior
diversidade (raça, gênero, classe, geracional), atuando nas formas
interorganizacionais através da troca de saberes. Neste processo, as fronteiras
simbólicas e territoriais são extrapoladas, construindo modelos discursivos e
de ações politicas baseadas em estruturas de identificações múltiplas, e formas
de organização pautadas em identificações híbridas e em formas discursivas
múltiplas. Através destas estratégias e condição criam-se tensões e ambiguidades
no interior do movimento e das redes por um lado, mas, por outro, constroem espaços
favoráveis para a construção de alteridade intersujeitos e para práticas
democráticas e democratizantes.
Conclui-se então que, além de ser um
espaço de luta, intercâmbio e formação política do Movimento de Pescadores e
Pescadoras e do Conselho Pastoral da Pesca, a Articulação Quilombola e
Pesqueira Subaé é um espaço onde as comunidades refletem sobre a conjuntura e
traçam estratégias de luta em defesa dos seus territórios, direitos e politicas
públicas. É espaço de estratégia de ação coletiva, baseada numa cultura
solidária, cooperativa, horizontalizada e mais democrática, para uma nova forma
de organização da sociedade. Para tanto, utiliza se da estratégia de aliança
com outros grupos e se articulam em redes de movimentos sociais. Pois as redes
aproximam e criam espaços interorganizacionais de trocas simbólicas e materiais
entre os sujeitos políticos, permitindo desenvolver o processo de mobilizações
de forma articulada, com visibilidade e impactos midiáticos para além do espaço
local.
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[i] Samyr Uhuru,Militante do Akofena, Bacharel em Ciências Sociais pela
UFRB, Pós-Graduando em Estado e Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais
da UFBA,
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