segunda-feira, 29 de maio de 2017

O DESAFIO DE RECRESPAR: MEU CABELO, NOSSOS DESAFIOS E A ANCESTRALIDADE PRESENTE NOS FIOS




O Desafio de Recrespar: Meu Cabelo, Nossos Desafios e a Ancestralidade Presente nos fios
                                                                                                       
                                                                      Por: Edna Balbina dos Anjos dos Santos[i]

“Ela puxava e sacudia minha cabeça. Que ódio que eu tinha daquela mata que ela dizia que era de cazuzinha, ela também sentia o mesmo ódio”!

Hoje, durante a chuva das onze horas, repensava meu processo de alisamento capilar e meu processo de desalisamento. É esse o termo. Desalisamento. Foi quando comecei a naturalizar meus fios ou renaturalizar da forma que acredito ser. Assim, lembrei também do trabalho feito pela professora Angela Figueiredo[1], com artigos ricos como o da professora Vilma Reis[2], que li já há algum tempo e diferente da avó da professora Vilma que baixou decreto onde na casa dela mulher nenhuma alisava o cabelo, o decreto por cá era outro, bem severo que para as normas do tempo e do espaço nós acatávamos ansiosas: quando estiver maiorzinha já dar para passar ferro nesse cabelo para amansar esta mata. O trabalho de alisamento com ferro quente era feito por tias e primas mais velhas, nunca por minha mãe, ela empurrava o problema para as companheiras e a técnica era desenvolvida na cozinha das casas ao pé do fogão de lenha, para mim sempre foi desagradável por ser um trabalho feito por mulheres mais velhas e eu nunca poder contribuir com as conversas, eu era criança.
Em muitos destes plantões de alisamento mãe estava presente dando suas gargalhadas, amarrando a prosa e caracterizando meu pobre cabelo duro: O cabelo da menina é ronceiro, é uma mata gente! Era rotineiramente a fala de mãe que se refazia variadas vezes por minhas tias, minhas primas, avós e vizinhas. Até ficar “maiorzinha”, passei pelo maldito processo de colocar toalha na cabeça e sacudir imitando cabelos longos daqueles que a gente ver na TV. Levei muito tapa no cangote e pentadas para me posicionar no momento de puxa-desembaraça os nós do cabelo “duro”. Lembro-me de uma cena muito forte em um destes dias de luta quando mãe lavava meu cabelo e ao mesmo tempo me dava banho dentro de uma bacia, ela colocava a bacia encima de um banquinho para a altura se assemelhar à dela, por instante teve que se afastar para pegar algo e eu fiquei sozinha e me desequilibrei caindo com a bacia d’água, doeu, chorei, mas para ela não tinha alivio foi dura comigo como em todas as vezes que precisava cuidar do meu cabelo, para ela aquele cabelo era um estorvo, ele era culpado de tudo porque se não fosse ruim ela não estaria tendo tanto trabalho. E para mim também. Quando na emergência destes acontecidos, eu com meus cinco ou nove anos, não refletia sobre a condição do meu cabelo, sabia apenas que ele era “ruim e duro”.
Alisei! Foi como todas as outras primeiras vezes, tanta alegria em ter cabelos lisos, de inicio era com ferro, depois com produtos químicos de diversas marcas conforme o cabelo não se desenvolvia era substituído o método ou o produto, “está fraco”, “dar escova para ficar mais arrumado”, “tu vai ir com esse cabelo assim? “caiu”. No processo de alisamento tive muitxs cabeleireirxs, para mim, os momentos que vivi com minhas primas quando elas alisavam meu cabelo não tem preço, era um momento de por em dias aqueles assuntos que as mães não poderiam sonhar que existiam, repensando agora, desenvolvíamos a mesma pratica das mães e das tias quando éramos crianças e elas conversavam coisas que para nós eram bobas. Nós éramos uma só carne e meu cabelo gostava delas, o tempo que minhas primas alisavam foi à época em que ele mais se comportou como o cabelo liso e macio desejado por mãe desde a minha infância.  
            Nunca as tranças, nem a naturalidade eram ideais para beleza e eu também acreditava em tudo isto. Sem resultado de crescimento depois de muitos anos de alisamento, resolvi por usar implante e foi aquele auê, todas as pessoas achavam lindo era muito cabelo e eu me tornei uma verdadeira “morena”, aquele tipo bem vista pelas amigas, desejada por muitos homens e feliz por ser isto que via. Como eu gostava de ter cabelos longos! Isso já foi na casa dos 20, quando já tinha meu próprio dinheiro para comprar meus fios.
 Durou muito tempo da minha vida minha fuga da crespandade herdada dos meus ancestrais. Que triste não ter sido por mais tempo aquela menina de cabelo crespo com tranças da forma que eu era quando não podia ainda alisar, que dor saber que fui alisada por tantos anos sobre a pressão do racismo de não aceitar nossos fios rebeldes, dói lembrar que a agressividade da minha mãe ao lavar, desembaraçar e trançar meu cabelo era um pensamento sistematicamente organizado contra nosso reconhecimento enquanto povo de cabeleira crespa. Mas enfim, já quase aos trinta, quando a ancestralidade resolveu ocupar seu lugar na minha vida iniciei o processo de reavivamento do cabelo, meu Deus! Como era estranho está de frente ao espelho e ver meu cabelo criando aquela raiz grossa, enrolada. Era o “cuminho” denominado na infância por todas as pessoas próximas, deixei o implante de lado e usei tranças de kanekalon por bom tempo para aguardar o crescimento dos fios.
Em um dia diferente de todos os outros resolvi tirar as tranças, cortar o cabelo alisado e apodrecido que ainda me restava e enfim voltar a ter como propriedade meu cabelo, minha herança mais linda, fina e difícil de assumir assim como minha pele, meu nariz, a cor das unhas e genealogia, pois em momentos que não este, ser quem sou me pesava diferente. Na verdade, foi ai que tudo iniciou na minha vida de mulher solteira negra quilombola. Na emergência que cortei o cabelo minha avó chegou à minha casa e no susto que teve por ver meu novo estado capilar ela não hesitou em pegar minha orelha e torcer, já quase aos trinta nunca tinha passado por isso com minha avó e agora estava ela ali, me exemplando pelo erro que fiz, por ter transformado meu cabelo naquilo.
Minha avó é só o exemplo de tantas retaliações que sofri desde que renaturalizei meu cabelo, frequentemente frases do tipo “era mais bonito antes”, “por que cortou?”, “vai dar beleza natural?”, “o que tu fez neste cabelo?” “caiu foi?”, e toda vez que ia sair na rua antes me olhava no espelho, pensava nas minhas razões para assumir meus fios reais e como reagiria diante da não aceitação social a respeito da imagem que assumia como verdadeira para protagonizar minha existência.
Via ali uma provocação às opiniões que chegavam até a mim e comecei a dizer que aquele era o meu real cabelo, que eu o herdei do meu avô e varias explicações para poder em paz carregar meu próprio cabelo. Tive que lidar com a nova situação porque já não era vista como nada próximo ao ideal de beleza, era só mais uma preta e não mais uma preta chamada de morena, foi difícil aceitar porque sabia que era resultado da minha crespandade, estava incorrendo na situação de ser uma preta não desejada nem apenas para relações casuais e apesar disto não ser tudo, relacionamentos afetivos é também importante para nós.
É muito engraçado como a leitura dos nossos corpos é feita de maneiras diferentes dependendo muito do lugar em que a gente está ocupando, no espaço acadêmico meu cabelo era motivo de elogios entre meus colegas e companheiros da militância e da sala de aula e até para alguns universitários que nem faziam parte do meu circulo de vivências. Dentro da minha comunidade negra, onde todas as pessoas tem o cabelo igual ao meu, basta não alisarem para perceberem, já era algo extremamente fora do comum, criou rumores, era meu cabelo duro. Outra questão que falo com muito cuidado para não pecar é a reação que percebi no meu ambiente de trabalho, por está em contato com muitas pessoas refletia sobre a forma como me olhavam e como se referiam ao meu cabelo e isso até hoje, portanto, hoje já sei lidar com a questão. O que quero enfatizar é a necessidade de construção identitária que devemos carregar em nosso interior para assumir nosso crespo natural, caso contrario tudo é modismo, as pessoas aceitam um cabelo tratado por empresas de beleza que seja posto no comércio como natural, mas desnaturalizam nossa verdadeira identidade capilar. Penso e digo como foi difícil encarar aqueles dias iniciais onde todos do meu convívio comunitário enxergaram como estranha minha verdadeira imagem.
O que há de verdadeiro, de amor, de apaixonante em todo processo discutido neste texto é a fortaleza que meu cabelo traz à minha vida. Toda vez que toso, que lavo, que penteio, que alguém trança me sinto mais forte, tive medo no inicio, foi como que assumir minha cabeleira “mata de cazuzinha” significasse cometer um crime nos espaços em que frequentava, pensava muito nas reações e de fato tive que encarar muitas objeções, muitas mesmo. Sinto que ter cabelo “duro” interfira nas oportunidades de flerte, sinto que contribua para a decisão do segurança da loja me seguir quando adentro o espaço e ainda colabore para que a mocinha preta cabelo “ruim” não conquiste vaga no emprego. Mas, meu cabelo é algo além do que posso definir aqui nestas linhas, não é palpável, é bem mais do que veem em minha imagem. É a herança mais viva e real deixada pelos meus ancestrais e que realmente consegue fazer minha cabeça. É minha forma mais concreta de afirmar quem sou, de onde venho e em que acredito, na verdade meu cabelo fala mais que minha voz, pois não treme quando se posiciono entre desconhecidos, ele simplesmente segue reto, sem balancear e sem desejo de se esconder, assim como, os meus que já partiram fisicamente mas que não me deixam. Meu cabelo é ancestralidade!

Referência
Figueiredo, Angela; Cruz, Cintia. Beleza Negra Representações sobre o cabelo, o corpo e a identidade das mulheres negras



[1] Possui graduação em antropologia pela Universidade Federal da Bahia (1994), mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (1998) , doutorado em Sociologia pela Sociedade Brasileira de Instrução - SBI/IUPERJ (2003) e Pós-doutorado no Carter Woodson Institute (UVA-EUA/2006). Atualmente é professora adjunta da UFRB , professorada associada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro/UFBA) e coordena o curso Internacional Fábrica de Idéias.
[2] Socióloga, Ativista do Movimento de Mulheres Negras, Ouvidora Geral na empresa Defensoria Publica do Estado da Bahia, Coordenadora do Programa de Direitos Humanos na empresa Ceafro-CEAO/UFBA. Professora na empresa Uneb - Universidade do Estado da Bahia.


[i] Graduada em Serviço Social, graduanda em Ciências Sociais, militante do Núcleo de Negras e Negros da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB. Militante do coletivo dos quilombolas da UFRB.



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